
O que nos rodeia
Ana Roman
I. As ligações
Em Ercília, cidade imaginada por Italo Calvino, relações são marcadas por fios que atravessam esquinas, conectam casas e simbolizam afetos: “Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas, só restam os fios e os suportes dos fios”. Para Calvino, a cidade se constrói por meio dessas relações, tecidas como redes afetivas que se tornam, simultaneamente, visíveis e invisíveis. Essa imagem pode ser estendida a outras cidades e formas de habitar coletivamente, em que relações interpessoais e sociais constituem o verdadeiro tecido urbano, estruturando nossa percepção e a experiência dos espaços ocupados. Assim, as conexões humanas e espaciais tornam-se extensões corporais, compostas de memórias e afetos que sustentam nossa existência. Tais ligações possuem uma natureza frágil e efêmera; estão continuamente sujeitas a rupturas e reconfigurações. Afinal, o que resta na cidade quando não há mais relações?
Os trabalhos de Matías Malizia partem de uma investigação acerca de como vínculos — tão necessários à vitalidade urbana — podem se refletir em estruturas artísticas. Observando a cidade como um cenário em constante mutação, ele se debruça sobre o ponto delicado entre o visível e o invisível, o estável e o transitório. Utilizando ímãs como dispositivos arquitetônicos, o artista constrói estruturas que desafiam a rigidez aparente da geometria. Suas instalações são organizadas a partir de lógicas modelares claras, mas a firmeza desses desenhos revela-se ilusória: há sempre uma fragilidade latente, uma ameaça sutil de dissolução. Malizia trabalha com materiais que oferecem apoio mútuo e concebe geometrias instáveis que funcionam estrategicamente: elas criam o espaço enquanto expõem a sua impermanência, sugerindo que toda arquitetura é, de algum modo, transitória. As linhas que Malizia desenha são provisórias como os fios de Ercília, prontas para serem abandonadas ou reconfiguradas, assim que novas conexões forem estabelecidas ou desfeitas.
Recentemente, Malizia tem se dedicado à cerâmica e ao barro, materiais que carregam conexões profundas, visíveis apenas por um olhar microscópico. Esses materiais revelam redes complexas de partículas e elementos interligados, simultaneamente fortes e vulneráveis, resistentes, porém quebradiços. Em paralelo, o artista busca compreender as redes subterrâneas das plantas, explorando a complexa comunicação vegetal que ocorre invisivelmente sob o solo. Essa pesquisa encontra ressonância no conceito de “infraleve”, desenvolvido por Marcel Duchamp em suas anotações. O infraleve refere-se a acontecimentos ou sensações quase imperceptíveis, experiências sutis e passageiras no limiar da percepção — como o calor deixado em um assento recém-abandonado ou o aroma único que mistura tabaco e hálito. Duchamp descrevia o infraleve não como substantivo, mas como adjetivo, sinalizando uma dimensão sensível e efêmera da existência. Para ele, tais eventos mínimos ganham importância justamente por sua delicadeza e brevidade, criando conexões tênues e singulares entre objetos e pessoas. Esse conceito sublinha a transitoriedade e a fragilidade das ligações que permeiam nossa existência, destacando a beleza oculta e fugaz que se encontra nas pequenas experiências cotidianas. Assim como o infraleve de Duchamp, o trabalho de Malizia enfatiza a potência do sutil e do temporário, revelando a intensidade silenciosa e a importância das conexões mais frágeis e passageiras.
II. O incorpo
Em O Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavares propõe uma reflexão sobre a noção de incorpo. O incorpo é compreendido como uma rede de vínculos estabelecida entre o indivíduo e o mundo: afetos positivos ou negativos, hábitos, objetos, espaços, animais e memórias. São essas ligações que conferem densidade e singularidade à existência humana, indo além da simples sobrevivência física. Em oposição, o corpo, em sua dimensão mais restrita, seria apenas carne, fisiologia pura, matéria vulnerável que, sem essas conexões do incorpo, se torna facilmente renunciável. Assim, pensar o corpo implica pensar suas conexões, as redes simbólicas e afetivas que o atravessam, sustentam e definem.
Fabiana Preti investiga a forma a partir dessa ideia expandida do corpo, explorando como relações afetivas e simbólicas podem ser estruturantes de nossa percepção visual e material. Sua pesquisa é marcada por uma busca constante pela geometria e pela abstração: as obras da artista frequentemente partem de grids e estruturas geométricas que, apesar da aparente precisão, exibem uma maleabilidade inesperada, questionando os limites entre a rigidez formal e a fluidez da matéria.
A repetição surge como um recurso central no trabalho de Preti: ao mesmo tempo que organiza a composição, cria oportunidades para variações em estruturas aparentemente uniformes. Esse movimento repetitivo leva o observador a notar diferenças sutis, aproximando-se da ideia de um “espaço entre” — um lugar que conecta e, simultaneamente, distingue cada elemento, preservando sua singularidade. Nesse sentido, o “entre” não é apenas um vazio, mas uma linha mínima que toca e une, sustentando um equilíbrio delicado. É o encontro entre superfícies distintas que não se anulam nem se fundem, mas se reforçam por meio de suas diferenças. A cor também exerce papel essencial, construindo diálogos visuais que equilibram tensão e harmonia, intensificando a percepção das relações entre elementos diversos.
A geometria precisa das obras da artista é sempre atravessada pelo gesto manual, que deixa vestígios, falhas e marcas. Nesse sentido, a linha opera como uma pele que toca e é tocada, demarcando limites e diálogos entre formas e materiais. Tecidos e bordados, por exemplo, revelam tanto processos quanto estruturas internas, destacando igualmente o anverso e o reverso e enfatizando a dualidade entre precisão e imperfeição, entre ocultar e revelar. A cor, por sua vez, potencializa esse jogo, atuando como um elo que equilibra tensão e harmonia, abrindo novas possibilidades de percepção. Desse modo, o trabalho de Preti alcança uma síntese em que o rigor geométrico e as sutilezas manuais coexistem.
III. Entre órbitas e âmbitos (ou a astúcia de amarrar o vento)
Em termos astronômicos, uma órbita é o trajeto que um corpo realiza sob a influência gravitacional de outro. Em geral, ela assume configuração elíptica, mas pode tornar-se extremamente excêntrica de acordo com a força e o alinhamento das estrelas envolvidas. Recentemente, astrônomos descobriram o exoplaneta TIC 241249530 b, cuja órbita muito alongada provoca extremos de temperatura e sugere uma possível transformação em “Júpiter quente”. Situado em um sistema binário a cerca de 1.100 anos-luz da Terra, o planeta sente o puxão de duas estrelas desalinhadas. Seu percurso é tão excêntrico que os cientistas chegam a compará-lo a um pepino, tamanha a deformação. A cada volta, ele enfrenta variações intensas, como se tentasse amarrar ou laçar o vento — um gesto que evoca a tentativa de conter, ainda que por um instante, a energia imprevisível que o impulsiona.
Essa dança orbital, com transições bruscas e variações térmicas, pode ser tomada como metáfora para a forma como certas práticas artísticas lidam com movimento e incerteza. Pensar em “laçar o vento” não implica congelar o incontrolável, mas captar o momento em que forças diversas convergem e geram possibilidades de forma. Nessa ideia, a linha que desenha a órbita — ora próxima, ora distante — reflete um equilíbrio precário, sujeito a mudanças súbitas.
Para Malizia, o interesse recai na construção de geometrias provisórias, em composições magnéticas e cerâmicas que permanecem unidas até que uma nova configuração lhes imponha mudanças. Suas estruturas se amarram e se desfazem, lembrando uma órbita que muda de curso a cada influência externa. Em vez de tentar estabilizar para sempre, o artista evidencia a impermanência como um elemento fundamental do espaço urbano e das relações que nele se estabelecem. Os ímãs, o barro e outras matérias frágeis agem como blocos modulares que podem ser rearranjados, numa coreografia constante entre construção e dissolução.
Já Fabiana Preti se debruça sobre a repetição e a geometria, porém acolhe delicados desvios que reforçam a dimensão afetiva e simbólica de cada traço. Suas obras, frequentemente baseadas em grids e linhas, tornam-se flexíveis diante do toque manual, das nuances cromáticas e da sensibilidade do processo de bordar ou pintar. Assim como a órbita do TIC 241249530 b, que perde e ganha energia ao longo de seu percurso, a produção de Preti transita entre a ordem pretendida e o acaso das falhas, exibindo uma dança interna que conjuga ritmo e improviso. Em cada variação, surgem mais configurações, como se a artista estivesse sempre à beira de liberar o vento que se mantém momentaneamente contido.
Entre essas órbitas instáveis, surgem também âmbitos — não como zonas fixas ou cercadas, mas como campos de relação, campos de forças. Se a órbita é o percurso influenciado por gravidade, o âmbito é o espaço provisório que se forma a partir dessas influências. É nele que os gestos se inscrevem, que os materiais se acomodam (ou resistem), que os objetos ganham tempo para existir antes de se transformarem. As obras de Preti e Malizia não se restringem ao espaço físico que ocupam; elas criam seus próprios âmbitos, abrindo zonas de sensibilidade e atenção onde forma e instabilidade convivem. Dentro desses campos, conter o vento não é tarefa de domínio, mas de escuta — um modo de permanecer por instantes em equilíbrio com aquilo que escapa. Tal qual o exoplaneta que baila entre duas estrelas desalinhadas, nestes trabalhos, nada se fixa definitivamente: permanece a astúcia de capturar o instante de convergência — uma órbita passageira na qual tudo se alinha — antes que as forças do tempo, do espaço ou do gesto provoquem nova metamorfose.








